Numa visão trágica da
existência
No nosso último artigo, comentamos
sobre o paradoxo cristão do “ser ou do não-ser”, conforme citado na peça trágica
de Shakespeare, Hamlet – paradoxo que envolve a questão: devemos ser apenas
passivos (renunciar a tudo) diante da vida e dos outros, ou teríamos de ter, na
existência, uma postura mais pró-ativa ?
Já há séculos, esta é considerada
a peça dramática mais famosa de Shakespeare e, segundo alguns
estudiosos, p. ex. Harold Bloom, a mais importante de toda literatura.
O drama inglês envolve a dúvida de
Hamlet, o príncipe da Dinamarca: deve ou não vingar o assassinato do pai,
perpetrado pelo próprio irmão deste, que, logo depois, casou-se com a mãe
de Hamlet e assim, num golpe triplo (assassinato, incesto, usurpação), ascendeu
ao trono do Reino?
A peça dramática desenrola-se sob o
guante de forte tortura psicológica de Hamlet, paralisado por vastos momentos
de inanição psíquica, alimentados por crises de consciência e escrúpulos, por
exemplo, “minha mãe é ou não uma traidora”? “Merece ou não também morrer?”
Vários cientistas literários,
dramaturgos, semiólogos, já se debruçaram sobre a questão: por que Hamlet fez
tanto sucesso? O psiquiatra soviético Lev Vygotsky, que fora também um grande
crítico literário antes de tornar-se médico e psicólogo, em duas ocasiões se
debruça sobre o tema, como pode ser visto em seu livro “A tragédia de Hamlet” e
num capítulo extenso de seu outro livro “Psicologia da Arte”, ambos pela
Editora Martins. Nestes estudos Vygotsky faz uma revisão das várias
interpretações, de diferentes autores, para o sucesso de Hamlet.
Para Vygotsky, o enorme apelo
literário da obra diz respeito ao misticismo sobrenatural (espiritualismo,
almas errantes, vida após a morte, sombras, etc) no qual a peça está envolta.
Tal misticismo remete o leitor a uma “outra dimensão”, uma dimensão espiritual
que contrasta com a visão materialista da vingança e da política. Para
Vygostky, os contrastes são o “motor” da arte dramática ou literária.
A partir de uma visão do
cristianismo, como já abordamos em nosso último artigo, avançamos outra
interpretação. O drama de Hamlet (“ser ou não ser, agir ou não agir, renunciar
ou não renunciar, perdoar ou não perdoar”) é o drama de toda Humanidade. É o
drama de nosso corpo e nossa mente, que sermpre querem alguma coisa, um querer
que sempre atropela mente e corpos de outras pessoas.
No nosso mundo, quase sempre,
“querer para si é prejudicar os outros”, quase sempre, quando queremos alguma
coisa temos de passar por cima do querer de alguma outra pessoa. Religiões e
filósofos importantes (budismo, Schopenhaeur, Kierkgaard, Dostoieviski) só
viram uma solução para isto: renunciar a tudo (p. ex., os
personagens monásticos: Alíocha e o príncipe, de “Os irmãos Karamazov” e “O
Idiota” de Dostoievski). “Renunciar a tudo”, “morrer em vida”, “isolar-se do
mundo”, “contemplação passiva”, “integrar-se ao Universo”, “deixar-se anular
pela passividade do Nirvana”.
Shakespeare, com sua genialidade
artística, captou todo este dilema universal, toda esta “injustiça trágica” que
Deus causou ao homem: “Desejar é matar.” Se Hamlet, p. ex., fosse dar vazão a
seu desejo, ele teria de matar o tio, muita gente da corte e até a mãe,
“cúmplice” na sórdida trama.
A peça artística de sucesso, ao contrário
do que diziam os “formalistas russos”, não depende apenas de uma “forma
perfeita”, uma “estrutura arquetipicamente aceita e consagrada”, nem mesmo de
uma trama bem urdida. Depende também – e talvez seja isto que qualifique uma
obra como “universal” – do apelo profundo aos grandes dilemas trágicos da
existência, e Shakespeare soube captar magistralmente um deles.
Comente este
artigo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário