quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Sobre preconceitos e outros males

Preconceito é tudo o que a gente acha que sabe, sem nunca ter vivenciado e sem nunca ter refletido sobre o assunto. O preconceito é um pré-conceito e embora guarde evidente conexão com a discriminação, não é a mesma coisa. Não é incomum que autores de doutrina e operadores do campo jurídico confundam os conceitos, ao atribuir-lhes linear sinonímia.

 O preconceito é algo cultural, que opera no plano das consciências e que pode, sim, desencadear um comportamento ou ação discriminatória. Não raro, eu tinha dificuldade de me fazer entender em tal explanação por meus alunos e costumava, então, exemplificar com um cidadão que, sendo dono de um restaurante, tinha grande preconceito contra pessoas de determinada origem ou etnia.

Entretanto, jamais negou-se a atendê-los em seu estabelecimento e seu comportamento nunca permitiu identificar, por ação ou omissão, marcas discriminatórias com relação a tais clientes. O preconceito permaneceu vivo, ainda que escondido, mas a discriminação capaz de ser identificada e tipificada não se manifestou.

Este tema é tão relevante que a Constituição Federal do Brasil dele cuida em seu primeiro título, dedicado aos princípios fundamentais. E o artigo 3º que trata dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (vejam bem: objetivos fundamentais) estabelece que um desses objetivos (são apenas quatro) é "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". (A redação poderia ser melhor, pois mesmo que o preconceito seja o gatilho que dispara a atitude discriminatória, não são a mesma coisa). Se o comando da Lei, tão claramente enunciado, fosse respeitado por todos (se fosse...) viveríamos, por certo, numa sociedade melhor.

Somos todos, sim senhor, pelo menos um pouco preconceituosos, na medida em que agregamos à nossa consciência coisas que absorvemos da convivência familiar e da educação que vamos recebendo. O que torna o preconceito uma praga e um dano permanente às relações interpessoais é justamente o fato dele ser um dado cultural, mas isso não o torna nem menos injusto nem impede que ele seja trabalhado e removido de nossas consciências.

 Cada vez que um de nossos filhos ou netos não quer dormir e o ameaçamos com "o velho do saco", estamos instilando nele uma fobia que provavelmente o acompanhará pela vida afora.

 Todos sabemos que não se contrai o vírus HIV num simples aperto de mão, mas quando um soropositivo nos estende a mão e não temos como não cumprimentá-lo, assim que possível corremos para o álcool gel mais próximo.

O preconceito, enquanto solerte e camuflado, gera a hipocrisia, estimula o que se fala à boca pequena, a maledicência da esquina, a insinuação que cuida em não comprometer o seu autor. O preconceito, assim posto e assim exposto, sem assumir-se e sem expressar-se na base do olho no olho, é uma das formas mais abjetas de covardia.

Artistas, políticos e outras pessoas cuja vida os torna necessariamente mais conhecidos e expostos, estão entre as vítimas preferidas. Homens públicos, desde sempre, ou são considerados ladrões, homossexuais ou sua mulher será infiel.

 Se isso não "colar", suas filhas serão devassas e seus filhos drogados. E se o político, artista, etc, for solteiro e comprovadamente decente e honesto, portanto sem mulher nem filhos para serem caluniados e difamados e sem que se lhe possa atribuir a pecha de ladrão, ah...ele que se prepare, pois corre o risco de que todo o tipo de baixaria sobre ele se abata.

Vivemos no século 21, mas com os mesmos preconceitos e futricas da Idade Média. Ao escrever isso, estou pensando em situações próximas, tanto do ponto de vista temporal quanto geográfico, porém o problema não é só local. Recordo do caso de Franklin Delano Roosevelt, o único presidente dos Estados Unidos que teve quatro mandatos consecutivos e que tornou-se uma lenda por haver conseguido retirar seu país da Grande Depressão dos anos 30 e, ao morrer, em 1945, ter legado a seu sucessor o saldo da vitória praticamente assegurada na Segunda Guerra Mundial.

 Pois bem, sendo Roosevelt um ícone (chegou a vencer uma eleição em 47 dos então 49 Estados Americanos) e em face de sua condição de cadeirante eventual (seria uma catástrofe tentar difamá-lo diretamente), seus detratores assestaram sua artilharia contra sua esposa Eleanor Roosevelt, uma mulher extraordinária (primeira embaixadora dos EUA na ONU) e que mantinha uma relação homoafetiva com uma jornalista.

 E daí? A verdade, porém, é que as estratégias diversionistas dos preconceituosos não têm limite.

O discurso sobre a identificação e a valorização da diferença é mais fácil, mas o concreto respeito e tolerância (tolerância não como um favor, mas como o efetivo reconhecimento ao direito de liberdade e opção de vida que nossos iguais devem ter) ainda deixam muito a desejar.

Seres humanos não são iguais e é justamente o efetivo exercício da liberdade que nos desiguala e constitui a tessitura capaz de tornar o mundo melhor. Vamos combinar: esta vida seria muito chata e evoluiria muito pouco se cada um de nós quisesse que os demais fossem nossas cópias. Valorizar a diferença é, sobretudo, respeitá-la.

 Quando não há esse respeito e alguns insistem em vasculhar a intimidade e a vida pessoal dos demais, o melhor é fazer o que alguns já fazem: ignorar os ignorantes, não responder às provocações, pois responder seria como atribuir aos preconceituosos o direito de intromissão.

Estou entre aqueles que acreditam que a educação pode nos tornar menos preconceituosos. Nesse sentido, não apenas a escola formal, mas a classe política, os presbíteros e pastores, as comunidades de sentido (a galera da torcida organizada, a turma do pagode ou do rock de garagem, as confrarias da esquina) e, principalmente a mídia e as famílias têm um papel essencial nesse processo que deve ser, primeiro, de desconstrução das visões obtusas que levam ao preconceito. E, por falar em mídia, o Diário Popular, em sua contracapa da edição da última segunda-feira já oferece um bom exemplo disso, ao não furtar-se a discutir e opinar sobre um tema que tradicionalmente é delicado e espinhoso.

Pelotas bem que podia - por sua generosidade e sua esplêndida tradição humanista - inscrever-se como um bom exemplo na luta contra os preconceitos. E cada um de nós pode começar, desde logo, dialogando com nossos filhos, nossos alunos e nossos amigos.

 E quando a conversa for com as crianças (infantes adoram e compreendem muito bem as categorias de "do bem" e do "mal"), poderíamos lhes dizer, por exemplo, que um político "do bem" é aquele que não é corrupto nem ladrão e trabalha para cumprir suas promessas e resgatar compromissos que tornem melhor a vida das pessoas de sua comunidade. O resto (resto mesmo) é preconceito.



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