terça-feira, 30 de julho de 2013

Um povo criativo, mas politicamente irresponsável e até licencioso


No processo dialético de construção da nação brasileira foram identificados diversos brasis que se defrontavam, afrontavam e finalmente se somavam na busca de unidade através da multiplicidade. Pois bem, é mercê a essa vocação de integridade na multiplicidade que hoje se pode falar em povo brasileiro, em nação brasileira, em Estado brasileiro, apesar de governos caóticos e caolhos liderados muitas vezes por políticos malparidos e incompetentes, nem sempre voltados para os superiores interesses nacionais.

Mas o que é ser brasileiro? Há algo de universal entre nós, brasileiros? Quem sabe, um modo de ser, de sentir e de agir? Um jeito peculiar de apreender o mundo das coisas? De opor-se em face dele? Uma quimera compartilhada? Enfim, os brasileiros são tão díspares entre si? É possível notificar certa analogia verdadeiramente substancial entre um industrial abastado e um mendicante? Ou entre um banqueiro e um ativista da CUT ou MST? Será que o ato de se expressarem no mesmo idioma e vibrarem com a camiseta canarinho é idôneo para que se possam conglobar como brasileiros, numa mesma eleição genérica, o ministro corrupto, o professor idealista, a dama do hight-society, o pele-vermelha, o garoto favelado, o tropeiro, o pai-de-santo, o juiz venal, o pastor, o trabalhador sem emprego, a faxineira, o estudante desventurado, o artesão criativo, o traficante de drogas e o político prevaricador? Caluda! Afinal, o que é ser brasileiro. Por certo, a ele são creditados certos descaminhos ideológicos na verônica do país: os emblemas da unidade pátria, comprometidos com o sentimentalismo cívico, mascaram antinomias fundamentais e dissimulam desigualdades sociais indecorosas. Todavia, nem tudo o que os brasileiros percebem do Brasil é produto de descaminhos ideológicos.

Por óbvio, na multiplicidade de culturas formadoras da cultura brasileira surgem oportunidades, nas quais se podem divisar certa probabilidade da criação de caracteres privativos de uma identidade única, mas capaz de universalização. Apta a se fazer entender por culturas outras, oportunizando-lhes uma experiência que poderá engrandecer - dans tout le monde - o melhor entendimento do frágil papel humano. Mas para que se tente usufruir essa probabilidade, urge fugir ao caminho desastrado trilhado por determinados brasileiros que teimam em vender um indulgente retrato do Brasil no exterior, com intentos de mera propaganda. O mais fiel retrato que a cultura brasileira pode propiciar de nós mesmos, brasileiros, e que é digna de ser desvelada lá fora, é a do complexo de nossas contradições mais intrigantes.

O povo brasileiro é criativo, porém politicamente irresponsável e até licencioso. Nós, brasileiros, construímos, sim, um Estado que por dezenas de décadas recebeu da metrópole lusitana ordenações que eram acolhidas e amiudadamente não executadas: um Estado que oprimia com alarvaria, mas podia ser ludibriado pelos espertalhões. Mais: um Estado cruel, por incapaz, zarolho, aparelho de despotismo e exploração, mas igualmente paiol de embustes, terreno de malandrices. Nós, brasileiros, desenvolvemos o dom da improvisação e o talento egocentrista para o jeitinho e as "virações". Falta-nos a disciplina indispensável aos feitos coletivos. Mais: iniciativas transformadoras mais enérgicas. E isso deságua numa cumplicidade com o conservadorismo malsadio. Pior: a subserviência.

Na América, o Brasil foi um dos derradeiros países a abolir a escravidão negreira. E tal languidez avigorou a depreciação do trabalho - proverbialmente subremunerado e reputado coisa de pacóvios. Pior: a vocação aos golpes e ao jogo: o carteado, os dados, as raspadinhas, a Loto, o bicho, as patas de cavalos et caterva.

Semelhantes particularidades inquietam a consciência cívica individual, como se o Brasil "tão majestoso, tão sem limites e tão despropositado", como o quer a poesia de Drummond, não acreditasse no pendor de seus filhos em notificá-lo como o seu país. Mas todos nós, brasileiros, o notificamos!


Comente este artigo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário